23 setembro 2008

não consigo escrever nada

Por isso volto a ler Jorge de Sena, e este poema em particular, que sempre me ajudou a acreditar quando tudo parecia sem sentido. Desta vez, é mais difícil encontrar sentido, porque simplesmente não há. A vida, a nossa vida, depende de muito mais do que os nossos actos, tanto para com nós próprios como para com os outros. A vida é frágil e misteriosa. A vida é fugaz. Mas vale a pena lutar por ela até ao fim e foi isso que tu Rita me ensinaste. Foi isso que fizeste, por ti e pelos outros, sempre que foi necessário. Vou ter muitas saudades do teu magnetismo rouco, como alguém dizia no outro dia. E nunca vou deixar de o ouvir.



CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido.

Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.


JORGE DE SENA

(1919-1978)

04 setembro 2008

deixou de haver tempo.



A miúda que tinha a casa de bonecas mais fixe que eu já vi na minha vida está muito muito doente. A minha amiga. Que me emprestou os livros do Tintim, do Blake e Mortimer e me ensinou a dizer que não, a gozar comigo própria e a fazer a depilação em 5 minutos.

Está muito doente e esta semana ficou pior. Hoje ficamos a saber que não sabemos quanto tempo é que ela vai aguentar. Eu finalmente enfrentei o facto de que ela, pura e simplesmente, não vai aguentar.

Nem tive tempo de falar mais com ela desde aquele dia, ha meses atrás, em que ela me ligou do hospital. A estupidez dos dias apressados meteu-se pelo meio, eu deixei que o transito as dores de cabeça os copos os jantares as compras o trabalho as contas se metessem pelo meio.

Perguntou-me se eu achava que lhe iam dizer quando chegasse o que chegou agora. Eu disse que sim, de certeza. Espero que tenham dito. E também me explicou como ía deixar de fumar. Eu voltei a fumar, dias depois.

Estou desorientada.

Que merda, um dia estás a dançar na discoteca pela primeira vez, a fugir de casa a meio da noite para ir fumar ganzas para o jardim, a dar o primeiro beijo na boca de um gajo que não sabe o que está a fazer.
E depois, quando pensas que ainda tens muito tempo, quando os miudos forem crescidos e já nao andarmos a saltar de trabalho em trabalho, de repente o tempo acabou. Deixou de haver tempo.

Crescemos e agora é altura de dizer adeus?

01 setembro 2008

p'ra maracangalha

Tropecei nesta música, na playlist de alguém aqui da agência, e não consegui deixar de ver a tua cara e até ouvir a tua voz quando trauteavas isto... desde que me conheço como gente que o fazias.

Neste Verão, mais uma vez, o Mica esteve a passar uma parte das férias em Arronches, tal como eu quando era criança. Num fim de semana estivemos lá, e houve uma noite estrelada como só ali, bem altas e inatingíveis que são as estrelas naquela parte do mundo.

A Mada disse que uma das estrelas eras tu. O Mica apressou-se a dizer que não, que tu não estavas nas estrelas, que estavas ali mesmo em Arronches, "debaixo de uma mesinha". Então eu disse que sim, que ele tinha razão, mas que nós podíamos olhar para as estrelas, e dar-lhes recados ou mandar beijinhos para as pessoas de quem gostamos, mesmo as que já morreram. Que as estrelas levam recados, são como pombos correio mas muuuuito mais rápidas.

E ali nasceu um ritual que se tem repetido muito todo o Verão, quase sempre por iniciativa do Mica. Fechamos os olhos, e mandamos um beijinho para o Bi Julio, todos ao mesmo tempo. Deves ter recebido beijinhos de Espanha, de Minas de S. Domingos, do Norte, que este Verão o teu bisneto fartou-se de viajar.

Hoje voltou à escola. Que saudades que eu tenho de voltar à escola. E de te ouvir cantar o Maracangalha. Espero que tenhas lá chegado, e que seja um sítio com muito sol e muita música, que é o que te fica bem.